16 março 2009

limite seco

"Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer"
(Panis et circenses, Gilberto Gil e Caetano Veloso)

Tomei distância. Dei um passo para trás. Me virei para aquela imensa porta e tudo atrás de mim nada dizia. Não ouvia os talheres levados à boca vazia. Tropecei. Quase num tombo de quatro. Não caí. Tomei consciência daquela cena tantas vezes corriqueira. Limitada pelo obstáculo da porta, agora, e para sempre, aqueles personagens precisavam virar passado.

Era um fato velho. Morar na casa de modelo colonial, envolvida por tantas histórias, pesava como os quadros barrocos pendurados nos corredores. Ainda escutar o zumbido dos passos nos tacos de madeira da sala, onde meu pai se arrastou nos últimos meses de vida, embrulhava o meu ânimo e me fechava em agonia. A comida estava na mesa. Fim do dia. Princípio da noite e o horário da última refeição. Mas, eu não conseguiria mais.

Até então, morava com os meus avós e meu pai. Dona Mira tocava a casa sozinha. Depois da aposentadoria forçada do meu avô, por causa de um infarto prematuro, Mirinha cuidava muito bem de tudo. Não deixava nada faltar. Nós éramos somente quatro. Meus irmãos nunca mais voltaram desde a separação dos nossos pais. Nunca conheci os meus sobrinhos. Não tive vontade. Não tenho. Mesmo que, emocionado, eu tenha chorado quando soube o nome do caçula da minha irmã, era meu xará. Será que ele é zangado e teimoso também, às vezes, me pegava imaginando. Mas, rapidamente, deixava de pensar. Seria indiferente saber.

Quando a minha mãe resolveu sair de casa, coloquei na cabeça, agora, não tenho mais ninguém. Cuidarei do papai e a ligação com todos os outros do antro Pereira, sobrenome materno, não me pertencem. E o único ente querido distante dali, embora, sem registro em cartório, desprovido de identidade e assinatura, era o Pluto. Cachorro safado e brincalhão. Não o ganhei de nenhuma namorada e nem comprei num pet shop. Ele me encontrou. Da rua também, adorava perambular solitário, assim nos identificamos rápido. Foi o meu guardião por longos anos, quando eu chegava bêbado e não conseguia abrir o portão, ele fazia a ronda, enquanto eu estava desacordado e esticado na calçada. O meu anjo da guarda tinha focinho e manchas pretas pelo corpo.

Desta vez, Pluto não apareceu para o jantar. Nem rastros dele havia pela casa. Eu ainda estava com a roupa de dois dias atrás, a mesma das últimas noites no hospital até o momento do enterro de Seu Aristides, meu pai. Acho que Pluto está de luto. Presenciou tudo. Deu adeus, enquanto corria desesperadamente atrás da ambulância. Dentro do carro, eu olhava pelo vidro e enxergava no latido dele o meu grito preso no peito rasgando-me por inteiro. Ele sabia do fim de papai. Eu também. Meu velho não resistiria. De novo, não. Ele não suportava hospital. Não aguentaria ficar mais um dia sequer numa maca. O câncer já estava avançado. Então, o homem que me ensinou a gostar de romances policiais e a tocar bandolim, precisava de paz.

Meu cachorro deveria ter se enfiado num beco qualquer da cidade. Não sei. Não teria mais as bainhas do Seu Aristides para rasgar. Por isso, o sumiço. E ali, na mesa de jantar com os meus avós, depois dos dias mais longos da minha vida, num breu nebuloso, o silêncio sepulcral nos engolia. Eu não podia mais. Enquanto, meu avô era servido por minha avó, me vi mergulhado no cheiro da cebola da sopa. Pálido e ao perceber um possível desmaio, dei um pulo em direção à porta de vidro da varanda. Num impulso, saí. Atrás de mim, numa vida repleta de senões, nada mais me cabia.

3 comentários:

  1. Porra, Dayane. Não sei de onde vem a tal insegurança pra escrever que você tanto me fala. Na hora em que você escreve ela some toda e só fica essa coisa que é esse texto e alguns outros que vi por aqui. Ainda é pouco, eu quero mais e todo mundo, pelo visto, quer mais.
    Não tem mais o que esperar, você escreve!

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  2. Roberto, você sabe que eu te ouço, né?
    Obrigada!
    Seu apoio vem sendo importantíssimo pra esse blog acontecer...
    um beijo.

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  3. Day, demorei pra ler esse texto...
    Mas li e adorei! ficou mto bom mesmo.
    Você foi mais profundo e deu mto bem contar disso!

    bjo, minha querida.

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